quinta-feira, 2 de junho de 2011

Ricardo Araújo Pereira no seu melhor

O autor que pensava de menos

A obra de José António Saraiva chama-se O Cão Que Pensava Demais, e agradará sobretudo àqueles leitores que já não se entusiasmam com livros acerca de cães que pensam apenas o suficiente

O segundo romance de José António Saraiva, ex-diretor do Expresso e atual diretor do Sol, foi recebido com uma estranha indiferença. O primeiro livro, O Último Verão na Ria Formosa, teve justo destaque no Expresso, que assinalou a "segurança e maturidade" do estreante. Mas do segundo, que confirma os méritos do escritor, o Expresso não diz nada. Vá lá uma pessoa perceber os jornalistas.
A obra chama-se O Cão Que Pensava Demais, e agradará sobretudo àqueles leitores que já não se entusiasmam com livros acerca de cães que pensam apenas o suficiente. Muito resumidamente, é a história de um guarda-noturno que tem medo do escuro. Menos resumidamente, é a história de um guarda-noturno que tem medo do escuro, que encontra na rua um cão vadio, que por sua vez encontra na rua uma senhora vadia. O guarda-noturno passa a coabitar com o cão vadio e a senhora vadia mas, visto que os vadios se detestam mutuamente, vê-se forçado a dar um tiro num deles, não interessa muito qual.
As personagens são inesquecíveis. Na página 18, o protagonista entra numa tasca e declara: "Sou o novo guarda-noturno aqui na zona e só entrei por entrar." Mais à frente, confessa que "na leitaria só falava por falar" (p. 25). De regresso à tasca, admite: "Venho aqui por vir" (p.27), e coloca a hipótese de o taberneiro, que lhe tinha oferecido uma bica, ter "dito aquilo por dizer" (p. 29). "Eu odiava falar por falar", adianta o guarda-noturno na página 113. Sobre o cão vadio, informa que "o Messias não ia para a cama só por ir" (p. 129) e, quando o cão lhe destrói a casa, interroga-se se o bicho tinha apenas querido "estragar por estragar" (p. 322). Um pouco antes, o guarda-noturno já tinha ponderado "viajar por viajar" (p. 189).
Neste ponto, o leitor menos sofisticado acredita que o autor esteve a escrever por escrever. É uma conclusão precipitada. Saraiva deseja que a história fique clara, e por isso conta-a várias vezes. A expressão "como já disse" faz quatro aparições (pp. 133, 300, 384 e 389), acompanhada das variantes "como também já disse" (p. 141), "já o disse" (p. 212), "como julgo que já disse" (p. 244), "já o disse neste relato" (p. 263). "já o disse e repeti" (p. 297), "como disse" (p. 325) e "como eu disse no relato" (p. 401). "Como já expliquei" aparece apenas três vezes (pp. 68, 97 e 127), mas há ainda um "como já deixei explicado atrás" (p. 43), um "já expliquei que" (p. 127) e um "como expliquei há pouco" (p. 130). Surpreende, por isso, que haja apenas dois "como os meus leitores já sabem" (pp. 52 e 383) e um "de que já também falei várias vezes no decurso deste relato" (p. 295). Como o facto de já ter falado, dito ou explicado qualquer coisa nunca impede Saraiva de voltar a falar, dizer ou explicar, o livro tem 400 páginas.
O guarda-noturno, recentemente desempregado da Docapesca, não tem razões de queixa da sua nova profissão: tirando o facto de não gostar de ser guarda nem apreciar a noite, o ofício de guarda-noturno é um sonho tornado realidade. Só há três tipos de noite de que ele não gosta: as muito calmas, as muito agitadas e as que não são uma coisa nem outra. De resto, a variedade das peripécias é igualmente estimulante, quer para a personagem quer para os leitores: "O dia e a noite seguintes foram iguais aos anteriores" (p.89), "O dia seguinte foi igual ao anterior" (p. 95), "Tudo continuava como há dois anos" (p. 156).
A vida sexual do guarda-noturno é igualmente variada. Primeiro deixa-se seduzir por uma moradora da sua área de vigilância: "Vi aproximar-se dos meus olhos um matagal escuro, afundei lá o nariz e a boca e fiquei muito tempo" (p. 125). Mais tarde, entrevê a nudez da prostituta a quem dá abrigo: "O que me atraiu mais a atenção foi o triângulo, espesso e enorme, que tinha ao fundo da barriga" (p. 182). Finalmente, envolve-se com uma criada de servir: "O que mais me atraiu o olhar, no entanto, foi a barriga lisa acabando numa floresta de pelos" (p. 268). O guarda-noturno de Saraiva apresenta-se aqui rebelde e insurrecto, uma vez que é insensível ao apelo de Eduardo Catroga para que certos assuntos deixem de ser discutidos.
Quando não está a informar o leitor de que as personagens estão a "fazer as suas necessidades" ou a "vestir o pijama" (pp. 34, 129, 171, 385, etc.), há dois grandes temas que Saraiva não perde de vista: o trabalho e a comida. O guarda-noturno interessa-se por várias áreas de conhecimento ("com muita pena minha, esqueci tudo o que aprendera sobre stocks de peixe congelado", p. 37) e gosta muito de ver trabalhar. Na farmácia ("aquilo era um espetáculo!", p. 142), no talho ("gostava de ver preparar um frango" mas "mesmo os trabalhos mais simples, como preparar os lombos de carne de vaca ou de porco, ou as costeletas de borrego, eram bons de ver", p. 144) ou nos Pastéis de Belém ("aquilo fascinava-me", p. 303). No capítulo "O insuportável tempo das obras" há um primeiro foco de tensão entre o guarda e a mulher, porque ele não tem interesse em assistir a obras, enquanto ela confessa: "Sempre tive uma atração por obras" (p. 283). É como diz a canção: não se ama alguém que não gosta tanto de ouvir o martelo pneumático como nós.
Quanto à comida, é rara a ementa que não é infligida ao leitor ao longo da obra. A descrição minuciosa da ingestão de um bife com batatas fritas (quase toda a página 349) ou as informações sobre a vida intestinal do cão ("o Messias tolerava mal o borrego", p. 111) são pontos altos de um relato que revela um autor que tem todos os sentidos alerta - menos o do ridículo. Não se pode ter tudo.


26 de Maio de 2011, in Visão

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